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A Aplicação Extraterritorial das Normas Constitucionais

A APLICAÇÃO EXTRATERRITORIAL DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS[1]

THE EXTRATERRITORIAL APPLICATION OF CONSTITUTIONAL NORMS

 Alessandra Fonseca de Carvalho[2]

 

RESUMO

O presente estudo possui como objetivo analisar a aplicação extraterritorial das normas constitucionais. Para tanto, examina-se a eficácia das normas constitucionais no espaço e a aplicabilidade das normas constitucionais. Verifica-se a incompatibilidade da norma constitucional estrangeira com a Constituição de origem, bem como a incompatibilidade da norma constitucional estrangeira com a Constituição do foro na hipótese de conflitos entre a jurisdição interna e a estrangeira. Empreende-se a análise dos Princípios da Territorialidade da lei, Princípio da Personalidade do Direito e da Extraterritorialidade, bem como das Teorias do Monismo e do Dualismo Jurídico para dirimir tais conflitos.

Palavras-Chave: Aplicação das normas constitucionais. Aplicação Extraterritorial. Princípios da Territorialidade e da Personalidade do Direito. Teorias Monista e Dualista. Soberania.

ABSTRACT

The present study aims to analyze the extraterritorial application of constitutional norms. To this end, the effectiveness of constitutional norms in space and the applicability of constitutional norms are examined. The incompatibility of the foreign constitutional norm with the original Constitution is verified, as well as the incompatibility of the foreign constitutional norm with the Constitution of the forum in the event of conflicts between domestic and foreign jurisdiction. An analysis of the Principles of Territoriality of law, the Principle of Personality of Law and Extraterritoriality, as well as the Theories of Monism and Legal Dualism is undertaken to resolve such conflicts.

Keywords: Application of constitutional norms. Extraterritorial Application. Principle of Territoriality. Principle of Personality of Law. Sovereignty.

SUMÁRIO

Introdução. 1-A aplicação das normas constitucionais no espaço. 2-A Constituição e a pretensão de extraterritorialidade. 3- O Direito Estrangeiro e a Ordem Jurídico-Constitucional Interna (Incompatibilidade da norma constitucional estrangeira com a Constituição de origem). 4- O Direito Internacional e o Interno (Incompatibilidade da norma constitucional estrangeira com a Constituição do foro). Considerações Finais.

INTRODUÇÃO

O presente estudo possui como objetivo desenvolver o tema “A aplicação extraterritorial das normas constitucionais”. O tema sub examine possui especial importância em virtude dos conflitos que surgem nas relações jurídicas entre os Estados, tendo em vista a movimentação dos povos e da população, bem como da circulação de riquezas.

A sua relevância exsurge do fato da coexistência de Estados soberanos e, por via de consequência, uma pluralidade de ordens jurídicas, a qual exige que sejam estabelecidos critérios, traçando limites, para que cada Estado possa exercer a sua soberania, que representa o exercício efetivo de todos os poderes típicos à personalidade jurídica do Estado e ao exercício da autoridade, estabelecendo seu ordenamento jurídico sobre todo o território. Revela-se como algo intrínseco ao livre exercício do próprio governo, originário do governo exercido em nome do povo, pelo Estado, com independência, em consonância com as suas próprias leis[3].

A delimitação dos critérios revela-se primordial à resolução dos conflitos que venham a surgir entre as diferentes ordens jurídicas, sempre que ambas tenham a intenção de recair num mesmo âmbito espacial. Nesta perspectiva, para desenvolver o tema proposto é mister analisar a eficácia das normas constitucionais no espaço e a aplicabilidade das normas constitucionais, acarretando o aparecimento de duas indagações principais: a jurisdição interna é competente para julgar o conflito e, se a resposta for afirmativa, qual direito será aplicável ao caso concreto?

Na hipótese de existência de tais conflitos, ou seja, conflito de leis no espaço, já que uma determinada situação jurídica encontra-se atrelada a mais de um Estado, o seu deslinde, num primeiro momento será resolvido mediante a incidência do Princípio da Territorialidade da lei, uma vez que, em uma análise preliminar, não poderia um Estado, sem dispensar a sua soberania, deixar de preconizar as normas jurídicas que deverão ser respeitadas e exercer a jurisdição com exclusividade em seu território.

Para além disso, tais poderes estariam restritos as suas fronteiras, ou seja, aos seus limites territoriais, o que impossibilitaria que o Estado abrangesse pessoas e coisas que nele não estivesse.

Ao revés, um outro princípio, de origem italiana, denominado Princípio da Personalidade do Direito foi desenvolvido pelo jurista italiano Mancini em seu famoso discurso no ano de 1851, na Universidade de Turim, na Itália, objetivando trazer uma solução para a indagação de como se daria a compatibilização da soberania pessoal da lei estrangeira com a soberania territorial da lei local. Impende salientar que a lei pessoal (relacionada à soberania pessoal) é aquela promulgada pelo Estado de origem e que se associa à pessoa, alcançando-a onde ela se encontre[4].

Destarte, se diante de um mesmo caso em concreto houver conflitos oriundos da concorrência de leis de Estados distintos, possivelmente incidentes sobre tais casos em concreto, os Princípios da Territorialidade e da Extraterritorialidade ou da Personalidade são chamados para dirimir os aludidos conflitos.

Consoante o Princípio da Territorialidade todas as pessoas e bens que estejam no território de um determinado Estado, estão subordinados tão-somente a sua legislação, ao passo que, de acordo com o Princípio da Extraterritorialidade, a pessoa pode valer-se da lei do seu Estado onde quer que se encontre.

Acerca de tais situações foram elaboradas Teorias, as quais vale a pena serem destacadas neste estudo, por possuírem importância dogmática.

Primeiramente, vale referir as Teorias extremadas, as quais, em regra, exsurgem de ideias parciais que acabam por não expressar a situação como um todo e trazem contornos absolutos aos Princípios da Territorialidade e da Extraterritorialidade. A Teoria da Extraterritorialidade ilimitada sustenta que a leis de um determinado Estado serão aplicadas aos seus nacionais ou aos indivíduos nele domiciliados, onde quer que se encontrem, não havendo que se perquirir sobre a matéria tratada, o que traria como consequência o afastamento da noção de soberania. Outra Teoria extremada, é a da Absoluta Territorialidade, segundo a qual somente a lei do Estado teria o condão de ser aplicada em seu território, não sendo possível a incidência de qualquer lei estrangeira naquele território, o que teria como resultado uma atitude de afastamento do Estado e dos seus cidadãos em relação aos outros.

As Teorias moderadas, por seu turno, possibilitam a harmonização de interesses contrários. A Teoria da Territorialidade moderada compreende que se exclui do âmbito das leis do Estado determinadas matérias que possuem relação com os direitos dos estrangeiros, como por exemplo, a sua capacidade civil. Em sendo assim, tais matérias continuarão a ser disciplinadas pela lei do Estado em que os indivíduos estão domiciliados, de que são nacionais.

Essa maneira para dirimir os conflitos requer que o legislador permita a incidência da norma estrangeira no seu território. Definir esse limite é matéria que pertence ao ramo do Direito Internacional Privado, sendo certo que a proximidade entre os Estados, celebrando tratados ou criando organizações internacionais, acarreta reflexos também importantes na esfera do Direito Internacional Privado[5].

1- APLICAÇÃO DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS NO ESPAÇO

            Em regra, as normas do ordenamento jurídico propendem a ter o seu âmbito espacial de aplicação correspondente com os limites do território do Estado. Ocorre que tal regra comporta exceções, revelando-se que a correspondência não é absoluta, uma vez que não é raro os Estados legislarem para fatos e pessoas no estrangeiro, bem como não recusam a aplicação do direito estrangeiro no seu próprio território.

Destarte, fatos que se verificam em outros Estados amparam a incidência de suas normas, não obstante a Constituição estar direcionada a ter eficácia no território do Estado de origem. Além do mais, não se trata de algo atípico que a presença de estrangeiros em um dos polos de uma relação jurídica pessoal ou patrimonial, fundamente a aplicação das normas constitucionais de outro Estado.

A Supremacia da Constituição traz ínsita a ideia de que não é possível reconhecer a imperatividade das normas constitucionais de uma forma irrestrita e ampla em relação a outro Estado.

A extraterritorialidade das normas constitucionais deve ser estudada a fim de que seja possível trazer uma solução para a indagação de se saber qual o limite da sua aplicação na esfera de jurisdição do outro Estado, que está a par da soberania do Estado de origem. Desse modo, ao tratarmos do tema sub examine devemos levar em consideração a importância da soberania em sede de conflitos entre as normas constitucionais no espaço.

Questão relevante que se coloca relacionada à investigação, diz respeito a perceber se um juiz ou Tribunal pode aplicar direito estrangeiro que não esteja em conformidade com a Constituição. Essa questão, bem como outras situações de conflitos entre as normas constitucionais e do direito interno serão estudadas no presente trabalho, uma vez que possuem importância quando estamos diante do conflito entre normas constitucionais no espaço.

Segundo o escólio do constitucionalista brasileiro Celso Ribeiro Bastos a resposta é negativa, argumentando que, na medida em que os Estados, ao se abrirem para o direito alienígena, possibilitando que critérios e conveniências próprios dos países estrangeiros ingressem no seu próprio terreno jurídico, não terão como objetivo que a consequência seja a aplicação de um conteúdo normativo que, se adicionado a uma lei nacional, haveria de torná-la inconstitucional[6].

Não se deve olvidar que a Constituição e as suas normas situam-se em um cenário mais amplo, possuindo relação com outras fontes de produção do direito, consequentemente, com outros sistemas normativos. Não obstante a Constituição seja a fonte primária e referencial do direito no âmbito interno dos Estados, a Lei Fundamental não constitui uma ordem fechada e necessita dialogar de forma direta ou indireta com outras ordens jurídicas.

Dessa forma, é habitual que os Estados firmem compromissos internacionais[7] e participem em menor ou maior grau do sistema jurídico internacional, quer seja no plano universal, sistema da Organização das Nações Unidas-ONU, quer seja, no plano regional, como por exemplo da Organização dos Estados Americanos-OEA, do Mercosul ou da União Europeia. Igualmente, não é rara a hipótese na qual vislumbramos a aplicação do direito estrangeiro a situações fáticas ocorridas em outro país.

O problema da aplicação das normas constitucionais no espaço possui especial relevância, porque nem sempre as relações entre a ordem jurídica interna e externa se estabelecem de maneira equilibrada, desprovidas de conflitos, oposições e contradições, já que o direito internacional pode desarmonizar com os princípios e regras constitucionais, bem como o direito estrangeiro, ou seja, o direito de outros países, constitucional ou infraconstitucional, pode na ocasião da sua aplicação, entrar em desacordo com as normas constitucionais.

Na hipótese de se verificarem tais antinomias que abrangem a Constituição, existem especificidades que necessitam ser consideradas e examinadas.

Observa-se que a problemática abrange duas facetas diversas, a despeito de partirem do mesmo cenário, qual seja, conciliar ordens jurídicas distintas e que não podem ser aplicadas integralmente ao mesmo tempo. A primeira delas diz respeito a analisar como se determina a relação entre o direito estrangeiro e a ordem jurídico-constitucional interna; a outra quanto às particularidades no que tange à relação entre o direito internacional e o interno[8].

2- A CONSTITUIÇÃO E A PRETENSÃO DE EXTRATERRITORIALIDADE

            Acerca do tema em análise é curial destacar que a força normativa da Constituição não pode ser imposta no território de outro Estado, como regra geral. Tal assertiva decorre da noção de soberania e da coexistência entre Estados soberanos, vale dizer, que a força normativa da Constituição tão-somente será irradiada no território do respectivo Estado.

No entanto, estas premissas podem ser afastadas levando-se em consideração o direito internacional privado e a presença do fator de conexão exigido, pelo que as normas constitucionais podem disciplinar situações jurídicas ocorridas no território de outro Estado, sendo aplicadas pela jurisdição de foro. Na hipótese de não haver a concordância do Estado estrangeiro ou o fator de conexão, apenas estaremos diante da extraterritorialidade das normas constitucionais quando o referencial de análise seja feito a partir (deslocado para) do juiz do foro, que irá aplicar as normas constitucionais segundo acontecimentos ocorridos no estrangeiro.

Nesta senda, insta destacar o artigo 14 da Constituição Portuguesa, o qual preconiza que os cidadãos portugueses que estejam ou residam no estrangeiro possuem a proteção do Estado para o exercício dos direitos e estão sujeitos aos deveres que não sejam incompatíveis com a ausência do país. Neste caso, a extraterritorialidade da norma constitucional portuguesa não permite a aplicação da Constituição lusitana no estrangeiro e sim a sua incidência tendo em vista o fator de personalidade, qual seja, cidadania portuguesa, em virtude de situações que se passaram em outro Estado. Observa-se que, in casu, há previsão expressa dos dispositivos constitucionais irradiarem a sua força normativa em território estrangeiro[9].

Numa outra perspectiva, se não houver previsão expressa de aplicação das normas constitucionais de um Estado em outro território, importante distinguir duas hipóteses: i) os destinatários são os cidadãos do Estado de origem; ii) agentes do poder público no exercício das suas funções.

No que pertine aos particulares, a regra geral que deve ser estabelecida é a de sua obediência à ordem jurídica do Estado em que estejam, uma vez que é neste território que serão estabelecidas as suas relações jurídicas quer sejam pessoais ou profissionais. Como exemplo, podemos citar uma empresa brasileira que se instale no exterior, estará vinculada às regras daquele Estado, não sendo abarcada, salvo disposição em contrário de forma expressa, pelas normas de proteção do direito ao consumidor estabelecidas conforme o preconizado no inciso XXXII do artigo 5º da Constituição da República Federativa Brasileira, do qual se infere que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”.

Quanto aos agentes do poder público, a subordinação às normas constitucionais será mais ampla, sob pena de se afastar a própria condição estatal dos atos perpetrados por eles. Em sendo assim, todas as condutas praticadas pelos agentes do poder público, mesmo que sejam praticadas no território estrangeiro, devem estar em consonância com a ordem jurídica do seu país de origem, abrangendo o respeito aos dispositivos constitucionais, máxime aos direitos fundamentais.

3- O DIREITO ESTRANGEIRO E A ORDEM JURÍDICO-CONSTITUCIONAL INTERNA (Incompatibilidade da norma constitucional estrangeira com a Constituição de origem)

Neste caso podemos vislumbrar duas hipóteses que podem ocorrer e que merecem especial atenção, quais sejam: i) as relações entre o direito estrangeiro e a Constituição do mesmo país, ou seja, a Constituição de origem; ii) as relações entre o direito estrangeiro e a Constituição de outro Estado, no caso o Brasil.

Neste diapasão, o questionamento que se faz é perceber qual o alcance para que um juiz de determinado Estado, na hipótese do nosso estudo, o Brasil, aplique o direito estrangeiro e, em havendo conflito, qual será a decisão mais adequada a ser tomada pelo juiz brasileiro.

A corrente dominante de pensamento capitaneada pela jurista brasileira, especialista em Direito Internacional Privado, Nadia de Araújo[10] entende que o juiz ou órgão jurisdicional colegiado brasileiro ao aplicar a lei estrangeira, deverá fazê-lo como no país de origem. Impende salientar que ao incidir o direito estrangeiro, o juiz brasileiro deverá aplicar todo o direito, inclusive o direito constitucional, uma vez que os atos normativos infraconstitucionais e a Constituição formam uma unidade hierarquizada.

Analisando-se a primeira hipótese, isto é, a relação entre o direito estrangeiro e a Constituição do mesmo país (de origem), a doutrina e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal Brasileiro convergem que o juiz pode deixar de aplicar a lei estrangeira se for conflitante com a Constituição estrangeira, vale dizer, do mesmo país ao qual diz respeito a lei. Importante salientar que este controle de constitucionalidade dar-se-á de forma incidental, vale dizer, que a lei não será aplicada tão-somente no caso concreto, não havendo que se falar na declaração de inconstitucionalidade da lei em tese (controle abstrato de constitucionalidade) e para além disso, este controle de constitucionalidade da lei estrangeira em face da Constituição do país de origem ocorre apenas nos casos em que o Poder Judiciário do país de origem seja competente para o aludido controle.

Por outro lado, solução diversa da primeira evidencia-se na segunda hipótese segundo a qual há conflito entre o direito estrangeiro e a Constituição de outro Estado, in casu, o Brasil. Isso porque a relação de constitucionalidade ou inconstitucionalidade diz respeito sempre a normas de um mesmo sistema jurídico, o que não se revela nesta situação. Ademais, a declaração de inconstitucionalidade requer uma relação entre ato normativo inferior e superior (Constituição), de um mesmo Estado, pois a Lei Maior é o fundamento de validade exclusivamente da ordem jurídica a qual se refere, motivo pelo qual não é cabível declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo estrangeiro quando em conflito com a ordem constitucional brasileira.

Em sendo assim, todo e qualquer ato normativo estrangeiro, quer seja lei ou ato jurídico que violar a Constituição Brasileira, não produzirá efeitos na ordem jurídica interna brasileira, uma vez que doutrina mais abalizada acerca do tema em comento entende que, na hipótese sub examine, outrossim, restará violada a ordem pública, o que é vedado pelo artigo 17 da Lei de Introdução às normas do Direito brasileiro[11]. Tal conclusão exsurge do fato das normas constitucionais serem consideradas como de ordem pública[12].

Por consequência, os órgãos jurisdicionais brasileiros não poderão no caso em concreto aplicar norma estrangeira na hipótese de conflito com o direito constitucional brasileiro, não se revelando num juízo de constitucionalidade da norma estrangeira. Não se deve olvidar que quanto aos efeitos da não aplicação da norma estrangeira o resultado mutadis mutandis acaba por ser o mesmo de um juízo de constitucionalidade, resultando da não incidência da lei estrangeira no que for contrário à Constituição da República Federativa do Brasil.

Com o objetivo de elucidar melhor tais regras vale a pena destacar as seguintes hipóteses: o artigo 5º, inciso XXXI da Constituição da República Brasileira trata acerca da sucessão de bens de estrangeiro. A regra somente se aplica à sucessão de bens de estrangeiros situados no Brasil. Se os bens se encontram no estrangeiro, incide a norma do Estado onde eles se encontram, porquanto a lei brasileira, in casu, não possui eficácia extraterritorial. Impende frisar que a lei pessoal do de cujus somente será aplicada se for mais favorável ao cônjuge ou aos filhos brasileiros, agasalhando o princípio da lei mais benéfica, isto é, a sucessão em bens de estrangeiro situados no Brasil orienta-se pela lei mais benéfica ao cônjuge ou aos filhos brasileiros, seja ela a lei brasileira ou a lei pessoal do de cujus[13]. Cuida-se de garantia constitucional para o cônjuge e filhos brasileiros, a lei mais benéfica para disciplinar a sucessão de bens de estrangeiros situados no Brasil e diversamente, se a lei do de cujus for mais favorável a sua família brasileira, deverá ser essa a regra para a sucessão. Regra idêntica ao parágrafo 1º Artigo 10 da LICC, que excepciona o caput do artigo 10, segundo a qual a sucessão por morte segue a lei do país onde era domiciliado o falecido, não importando a natureza e situação dos bens[14].

4- O DIREITO INTERNACIONAL E O DIREITO INTERNO (Incompatibilidade da norma constitucional estrangeira com a Constituição do foro-Constituição da República Federativa do Brasil de 1988)

            No que pertine às relações jurídicas estabelecidas entre o direito internacional e a ordem jurídico-constitucional, vale dizer, entre o direito interno dos Estados, foram elaboradas duas principais teorias que visam a dirimir os conflitos que porventura venham a surgir de tais relações.

A primeira delas, denominada Teoria do Dualismo jurídico, assevera que não estamos diante de um conflito propriamente dito entre a ordem jurídica interna e a internacional, eis que são âmbitos que não relacionam, já que o ato internacional somente produzirá efeitos se for incorporado à ordem interna.

A Tese Dualista sustenta a existência de uma diferenciação estrutural entre o direito interno e o direito internacional, com contornos difíceis de superação, entendendo ser o consentimento efetivo do Estado como fonte do direito internacional, o que acarreta óbices para fundamentar normas existentes sem o consentimento do Estados e para além dele[15].

Conclui-se que, para os adeptos de tal corrente, a ordem internacional e a interna são esferas diversas. As normas de direito internacional regulam as relações entre os Estados e entre estes e os demais membros da sociedade internacional, ao passo que o direito interno disciplina as relações intraestatais, sem qualquer relação com os fatores externos[16].

Para a outra corrente de pensamento denominada Teoria do Monismo Jurídico, o direito é unitário, motivo pelo qual tanto o direito internacional, bem como o direito interno integram o sistema jurídico. Nesta ordem de ideias, revela-se necessária a existência de normas que harmonizem esses dois domínios e que decidam qual deles deve preponderar na hipótese de conflito, sendo que há aqueles no âmbito desta teoria que entendem pela prevalência do direito interno e outros pela preponderância do direito internacional[17].

A Teoria Monista possui como escopo a elaboração de um sistema unitário e coerente, mediante o qual o direito internacional e o direito interno possam partir de uma ideia de igual dignidade e liberdade de todos os indivíduos[18].

Nessa mesma linha de entendimento, a Corte Permanente de Justiça Internacional, no ano de 1930, firmou a tese da superioridade do direito internacional em relação ao direito interno de cada Estado[19].

A doutrina brasileira dominante decide-se pela Teoria do Monismo Jurídico com prevalência do direito internacional, quer dizer que o Tratado Internacional (Direito Internacional) prepondera sobre o direito interno[20].

O supracitado entendimento acarreta consequências importantes que devem ser referidas no presente estudo, a saber: o tratado internacional altera lei interna anterior e/ou a revoga, quando for o caso e o tratado não pode ser alterado por lei superveniente.

O Supremo Tribunal Federal Brasileiro entende que os tratados de direitos humanos que tenham sido ratificados pelo Brasil possuem hierarquia supralegal, motivo pelo qual prevalecem sobre qualquer ato normativo interno. No entanto, se estivermos diante de uma norma constitucional, esta prepondera em relação aos tratados de direitos humanos, os quais possuem hierarquia infraconstitucional[21].

Destarte, a partir do julgamento do RE 466.343/SP podemos sistematizar o seguinte:

Os tratados, de uma forma geral, possuem hierarquia de lei ordinária, entretanto existem hipóteses que comportam exceções, senão vejamos:

Os tratados em matéria de direitos humanos ratificados antes da vigência da EC 45 e/ou não aprovados pelo rito do artigo 5º, parágrafo 3º da Constituição Federal Brasileira possuem hierarquia supralegal, consoante atual entendimento sufragado pelo Supremo Tribunal Federal. Por outro lado, os tratados em matéria de direitos humanos aprovados pelo rito qualificado preconizado no artigo 5º, parágrafo 3º da Carta Magna serão equivalentes às emendas constitucionais[22] .

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As normas constitucionais de determinado ordenamento jurídico possuem a sua esfera espacial de incidência, em regra, correspondente aos limites territoriais do Estado. No entanto, tal correlação não é absoluta, uma vez que muitas vezes os Estados legislam para indivíduos e fatos que ocorrem no estrangeiro, bem como não refutam a aplicação do direito estrangeiro no seu próprio território.

O direito interno de cada Estado é o que preconiza sobre quais as situações nas quais o direito estrangeiro pode ser aplicado e quais são as que o Estado deve dar preferência as suas próprias leis. Tais assertivas possuem especial significação, pois a denominada territorialidade da ordem jurídica de cada Estado possui importante pertinência no que se refere ao cumprimento das medidas coercitivas. Por certo, nenhum Estado aceita que outro lhe invada as fronteiras, com o objetivo, de mediante o uso de meios coercitivos, pratique atos impositivos no seu território. Nesta senda, no mundo globalizado que vivemos, são diversas as situações suscetíveis de serem conhecidas pela jurisdição de mais de um Estado, do mesmo modo de terem distintas leis que podem ser aplicadas, resultando no conflito de leis no espaço que é solucionado pelo direito internacional privado.

A interpretação das normas constitucionais deve ser feita não apenas para delimitar o conteúdo da norma, bem como para balizar o âmbito territorial de aplicação, não devendo ser aceita uma ampla e irrestrita noção de extraterritorialidade.

Em face da argumentação acima expendida e da investigação realizada pode-se sistematizar o seguinte, restringindo o tema proposto do presente estudo para o direito constitucional brasileiro.

Deverão os juízes e tribunais brasileiros deixar de aplicar a norma estrangeira que esteja em conflito com a Constituição brasileira. Não se deve olvidar que as normas constitucionais são consideradas como de ordem pública internacional, impossibilitando a produção de efeitos de leis, decisões judiciais e atos jurídicos estrangeiros que confrontem com elas.

Ao estarmos diante da aplicação de uma lei estrangeira, compete ao juiz ou tribunal brasileiro aplicá-la da mesma forma que os órgãos judiciários do país de origem da norma fariam. Assim, se naquela jurisdição permite-se a declaração de inconstitucionalidade de uma lei, poderá o órgão jurisdicional brasileiro atuar da mesma maneira, deixando de aplicar no caso em concreto dispositivo estrangeiro incompatível com o ordenamento jurídico de origem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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-BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22ª edição. Editora Malheiros, 2010.

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-BONAVIDES, Paulo, Miranda, Jorge, Agra, Walber de Moura (coordenadores científicos); Filho, Francisco Bilac Pinto, Junior, Otávio Luiz Rodrigues (coordenadores editoriais) Comentários à Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009.

-CENEVIVA, Walter. Direito Constitucional Brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva, 1989.

-CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª Edição, 11ª Reimpressão. Almedina.

-DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado. Parte Geral. 6ª edição ampliada e atualizada.  Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2001.

-GARCIA, Emerson. Conflito entre Normas Constitucionais. Esboço de uma Teoria Geral. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008.

-MACHADO, Jonátas. Direito Internacional: do paradigma clássico ao pós-11 de setembro. 3ª edição. Editora Almedina.

-MIRANDA, Jorge. Teoria da Constituição. Editora Almedina, 2020.

– SARLET, Ingo. A Constituição e as relações com o direito estrangeiro e internacional. In: Sarlet, Ingo Wolfgang. Marinoni, Luiz Guilherme. Mitidiero, Daniel (org). Curso de Direito Constitucional, 8ª edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2019.

-SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 6ª edição. Editora Malheiros, 2009.

 

[1] O primeiro capítulo do presente artigo jurídico foi publicado originariamente no site Consultor Jurídico em 04 de março de 2024. Disponível em https://www.conjur.com.br/2024-mar-04/aplicacao-extraterritorial-das-normas-constitucionais/ No blog www.direitosfundamentaisemfoco.com.br apresento a versão completa do artigo científico jurídico, cuja reprodução é permitida mediante a referência à fonte de informação.

[2] Doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Mestra em Ciências Jurídico-Políticas, Perfil Direitos Fundamentais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Defensora Pública Federal. Membra do Grupo de Trabalho Garantia de Segurança Alimentar e Nutricional da Defensoria Pública da União. E-mail: [email protected] Autora do blog www.direitosfundamentaisemfoco.com.br

[3] CENEVIVA, Walter. Direito Constitucional Brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva: 1989, p. 31.

[4] GARCIA, Emerson. Conflito entre Normas Constitucionais. Esboço de uma Teoria Geral. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 464.

[5] GARCIA, Emerson. Conflito entre Normas Constitucionais. Esboço de uma Teoria Geral…, ob. cit., pp. 464-465.

[6] Bastos, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22ª edição. Editora Malheiros, 2010, p.128.

[7] A título de exemplo, podemos destacar a Convenção dos Direitos da Criança da ONU, a qual preconiza os princípios de proteção da criança no cenário internacional, interessando ao presente estudo as questões com reflexo na esfera de mais de um Estado, ou seja, de mais de um ordenamento jurídico. Em se tratando dos aspectos civis do sequestro internacional de menores, os itens contemplados na aludida Convenção da ONU de maneira genérica foram disciplinados pela Conferência de Haia e pelas Conferências Especializadas da OEA. Impende frisar que o Brasil aderiu à Convenção de Haia sobre os aspectos civis do sequestro de menores e é signatário da Convenção Interamericana acerca da restituição internacional de menores, sendo certo que as convenções somente são aplicadas em relação aos Estados-membros.

[8] SARLET, Ingo. A Constituição e as relações com o direito estrangeiro e internacional. In: SARLET, Ingo Wolfgang. Marinoni, Luiz Guilherme. Mitidiero, Daniel (org). Curso de Direito Constitucional, 8ª edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2019, pp 209-217.

[9] Acerca do preconizado no artigo 14 da Constituição da República Portuguesa, vale a leitura dos ensinamentos do insigne doutrinador e professor lusitano Jorge Miranda na sua obra Miranda, Jorge. Teoria da Constituição. Editora Almedina, 2020, pp. 345-347, quando cuida da aplicação das normas constitucionais no espaço, máxime em se tratando da aplicação das normas constitucionais no estrangeiro.

[10] ARAÚJO, Nadia de. Direito Internacional Privado: teoria e prática brasileira. 5ª edição Atualizada e Ampliada. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2011.

[11] Prevê o artigo 17 da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, in verbis: “As leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes”. Como exemplo podemos citar uma lei estrangeira que concede maioridade ao indivíduo de idade inferior, em patamar totalmente inadmissível por nossa ordem jurídica.

[12] Acerca do tema vale conferir os ensinamentos do jurista Jacob Dolinger na sua obra DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado. Parte Geral. 6ª edição ampliada e atualizada.  Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2001. Segundo o doutrinador fala-se em ordem pública interna e ordem pública internacional, a primeira no âmbito do direito interno, representando o princípio que neutraliza a vontade das partes demonstrada contra leis cogentes, e a segunda, na esfera do direito internacional privado, que obsta a incidência de leis de outros Estados ou reconhecimento de sentenças estrangeiras, na hipótese de serem contrárias à ordem jurídica, a moral ou econômica do foro.

[13] SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 6ª edição. Editora Malheiros, 2009, p. 126.

[14] BONAVIDES, Paulo, Miranda, Jorge, Agra, Walber de Moura (coordenadores científicos); Filho, Francisco Bilac Pinto, Junior, Otávio Luiz Rodrigues (coordenadores editoriais) Comentários à Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009, p. 162. Acerca da sucessão internacional é curial destacar a doutrina da jurista brasileira Nádia de Araújo. ARAÚJO, Nadia de. Direito Internacional Privado: teoria e prática brasileira… ob. cit., pp. 495-507.

[15] MACHADO, Jonátas. Direito Internacional: do paradigma clássico ao pós-11 de setembro. 3ª edição. Editora Almedina, p. 121.

[16] BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 6ª edição revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Editora Saraiva, 2004, p. 16.

[17] Hans Kelsen na obra intitulada “Teoria pura do direito” reconhece, em tese, o monismo com preponderância da ordem interna e o monismo com preponderância da ordem internacional, inclinando-se pela segunda hipótese.

[18] MACHADO, Jonátas. Direito Internacional: do paradigma clássico ao pós-11 de setembro… ob. cit., p. 122.

[19] BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição…, ob. cit., p. 16.

[20] Corroborando com a tese de que os Tratados Internacionais prevalecem em face do direito interno é o escólio do constitucionalista português J.J Gomes Canotilho. A respeito do tema, trazendo, inclusive, ressalvas no sentido de que tal premissa comporta limites a uma eventual supremacia e primazia de aplicação das normas comunitárias, no que concerne às normas constitucionais, uma vez que se tal regra fosse absoluta teria como consequência a não observância do estado de direito democrático e constitucional. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª Edição, 11ª Reimpressão. Almedina, p.825-827.

[21] Neste sentido são as decisões proferidas no RHC 79.785, relator Ministro Sepulveda Pertence e RE 466.343/SP, relator Ministro Cezar Peluso. Disponível no site http://www.stf.jus.br Acesso em 11 de fevereiro de 2022.

[22] Disponível no site http://www.stf.jus.br Acesso em 11 de fevereiro de 2022.

 

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Alessandra Carvalho

Defensora pública federal

Defensora Pública Federal no Rio de Janeiro, mãe da Bia, casada e doutoranda pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, que “vive equilibrando pratos”!