O DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL À SAÚDE SOB A PERSPECTIVA DOS ORDENAMENTOS JURÍDICOS BRASILEIRO E ITALIANO: UM ESTUDO SOBRE O MÍNIMO EXISTENCIAL
THE FUNDAMENTAL SOCIAL RIGHT TO HEALTH FROM THE PERSPECTIVE OF THE BRAZILIAN AND ITALIAN LEGAL SYSTEM: A STUDY ON THE EXISTENTIAL MINIMUM
por Alessandra Fonseca de Carvalho[1]
RESUMO
O presente estudo possui como objetivo analisar o direito fundamental social à saúde, trazendo um panorama sobre os ordenamentos jurídicos brasileiros e italianos. Para tanto, optou-se por estudar, preliminarmente, acerca da evolução da consagração constitucional do direito à saúde em ambos os países. Aduziu-se acerca das controvérsias acerca da universalidade do direito à saúde, trazendo as teorias do Mínimo Existencial e do Mínimo Social para fundamentar a conclusão acerca do alcance da exigibilidade do direito fundamental social.
Palavras-Chave: Direito Fundamental Social à Saúde. Mínimo Existencial. Mínimo Social. Integralidade das Prestações.
ABSTRACT
The present study aims to analyze the fundamental social right to health, providing an overview of the Brazilian and Italian legal systems. To this end, it was decided to study, preliminarily, the evolution of the constitutional enshrinement of the right to health in both countries. It was discussed about the controversies regarding the universality of the right to health, bringing the theories of the Existential Minimum and the Social Minimum to support the conclusion about the scope of the enforceability of the fundamental social right.
Keywords: Fundamental Social Right to Health. Existential Minimum. Social Minimum. Comprehensiveness of Care.
SUMÁRIO
Introdução. 1.Breve Escorço Histórico do Direito Fundamental Social à Saúde no Brasil e na Itália. 2.Direito Fundamental Social à Saúde. Panorama Geral. 3.Universalidade do Direito à Saúde. 4.Mínimo Existencial. Mínimo Social. Saúde Básica vs. integralidade das Prestações. Considerações Finais. Referências.
INTRODUÇÃO
O presente artigo possui como objetivo tecer algumas considerações referentes ao direito à saúde que, atualmente, vem despertando o interesse do meio acadêmico quanto a esse tema, máxime tendo em vista a escassez de recursos, o que acarretará mais do que nunca a escolha de prioridades para a alocação dos recursos públicos.
Com o propósito de alcançar tal desiderato este estudo trata de questões que possuem estreita ligação com o tema escolhido.
Em sendo assim, inicialmente optou-se por cuidar do aspecto histórico do direito à saúde nas Constituições Brasileiras e Italianas ao longo do tempo e, a partir daí, verificar a diferença de tratamento deste direito fundamental social nos dois ordenamentos jurídicos.
Nos capítulos seguintes, optou-se por trazer um panorama geral, tecendo considerações gerais acerca do direito fundamental social à saúde, aduzindo sobre o seu caráter prestacional. A problemática que se coloca é o alcance da característica da universalidade do direito à saúde. Verifica-se extreme de dúvidas que se trata de direito de todos, mas existe alguma limitação ao exercício desse direito? Com arrimo nas doutrinas do Mínimo Existencial e do Mínimo Social, abordando questões acerca da Saúde Básica vs. integralidade das Prestações, tentamos nos desincumbir de tal mister, chegando a conclusões mediante a tomada de posição.
1. BREVE ESCORÇO HISTÓRICO DO DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL À SAÚDE NO BRASIL E NA ITÁLIA
Ao decidir traçar um breve paralelo histórico entre o direito à saúde no Brasil e na Itália, optou-se por fazê-lo tendo por base a importância que o Constituinte originário proporcionou ao direito à saúde no texto constitucional dos dois países ao longo dos anos.
A Constituição Política do Império do Brasil, promulgada em 25 de março de 1824, trouxe no seu artigo 179 uma declaração sobre os direitos individuais e garantias, cujos fundamentos permaneceram nos textos constitucionais posteriores, no entanto, quedou-se silente acerca da normatização do direito à saúde.
Outro não foi o caminho trilhado pela Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil promulgada em 24 de fevereiro de 1891, a qual, também não reconheceu o direito à saúde no texto constitucional.
Sob a influência da Constituição alemã de Weimar, com normas quase todas programáticas, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 16 de julho de 1934, consagrou um título acerca da Ordem Econômica e Social e outro sobre a Família, a Educação e a Cultura.
A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934 inaugurou o Estado Social brasileiro e, pela leitura do seu artigo 138[2], podemos verificar o início de preocupações com políticas sociais sanitárias.
A Constituição de 1934, que inaugurara o Estado Social brasileiro, foi revogada pela Carta Constitucional de 1937, sendo certo que o artigo 16, XXVII do seu texto preconizou a obrigação de planejar e legislar sobre o direito à saúde.
A Constituição de 1946, no seu artigo 5º, alínea “b” também se ocupou do direito à saúde ao estabelecer o direito à assistência médica e sanitária dos trabalhadores, consoante os artigos 137, I e 157, XIV.
Aos dias 09 de abril de 1964 expediu-se o Ato Institucional nº 05, ocasião em que a saúde ainda era de competência do Poder Executivo e condicionada à implementação de políticas públicas.
Por sua vez, a Constituição de 1967, promulgada em 24 de janeiro de 1967, em se tratando do direito à saúde, praticamente repetiu o preconizado na Constituição de 1964, dispondo no seu artigo 8º, XIV, que era da competência da União estabelecer e executar planos nacionais de educação e saúde, bem como planos regionais de desenvolvimento, não tendo sido, o direito à saúde, mais uma vez, prioridade no texto constitucional[3].
Com a promulgação da Constituição cidadã de 1988, o direito à saúde passou a ser previsto como um direito fundamental social universal, vale dizer, trata-se de um direito de todos.
Insta salientar que tão-somente após 40 (quarenta) anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, o direito à saúde foi positivado no ordenamento jurídico brasileiro enquanto norma constitucional e direito fundamental social no artigo 196 da Constituição da República Federativa do Brasil.
No que pertine ao ordenamento jurídico italiano, a Lei de Reforma Sanitária de 1978 passou a prever a universalidade do direito à saúde, como direito de todos independentemente das suas condições financeiras, ou seja, o direito à saúde na Itália é gratuito, não havendo que indagar se a pessoa é ou não desprovida financeiramente.
Neste sentido é o entendimento de Barbara Pezzini ao asseverar que “os direitos sociais, na mais ampla categoria dos direitos de prestação representam, de fato, específicas pretensões dos cidadãos de obter prestações de atividades da parte do Estado, ou de outros entes públicos que, de qualquer modo, exerçam atividade pública[4].”
Em sendo assim, verificamos uma preocupação do Poder Legislativo italiano com o direito à saúde ao editar a Lei de Reforma Sanitária de 1978 com o intuito de tutelar o direito à saúde enquanto dever estatal, objetivando com isso o pleno desenvolvimento da pessoa humana.
Na realidade, a Lei de Reforma Sanitária de 1978 veio a trazer uma interpretação mais abrangente ao artigo 32 da Constituição italiana de 1948, já que segundo tal norma constitucional o tratamento gratuito seria garantido tão-somente aos pobres[5].
A Lei de Reforma Sanitária de 1978 instituiu o serviço sanitário nacional e iniciou uma política pública na área da saúde preocupada principalmente com a medicina preventiva, com o planejamento e controle dos gastos públicos, dando ênfase no acesso igualitário a política pública da saúde[6].
2-DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL À SAÚDE. PANORAMA GERAL
A saúde revela-se, há algum tempo, como um dos temas mais amplamente discutidos pelos estudiosos das ciências jurídicas e sociais, estando, nos tempos atuais, sempre, no centro dos debates institucionais entre as mutáveis orientações político-ideológicas nos confrontos do Estado Social[7].
No âmbito do texto constitucional brasileiro, o direito à saúde encontra-se previsto nos artigos 6º e 196 a 200, estes últimos inseridos no Título VIII- Da Ordem Social, no Capítulo II- da Seguridade Social e na Seção II- Da Saúde.
O direito à saúde, o qual, na realidade, possui o efeito de salvaguardar o direito à vida encontra-se previsto no ordenamento jurídico-brasileiro como direito fundamental social..
Considerando que a Constituição da República Federativa Brasileira erigiu o direito à saúde como direito fundamental, as normas que o garantem possuem aplicabilidade imediata ex vi do parágrafo 1º do artigo 5º do mesmo diploma legal.
A Constituição Italiana de 1948 no seu artigo 2º[8] consagrou o direito à saúde no sistema composto e complexo dos direitos sociais, elevando-o à categoria de direito inviolável do homem, ao tutelar a sua integridade psíquica e física contra as ameaças advindas do ambiente externo.
Assim, ao erigir o direito à saúde como direito inviolável do homem, significa dizer que a pessoa humana pode afirmar a sua própria liberdade e autonomia[9].
Impende salientar que os direitos fundamentais no ordenamento jurídico italiano são considerados como invioláveis, eis que são irrenunciáveis, inalienáveis, intransmissíveis e imprescritíveis, representando quase uma segunda pele do indivíduo.
Além disso, abarcam não só o cidadão italiano, mas também os estrangeiros, considerados primeiramente como indivíduos e, posteriormente, como não cidadãos, não fazendo distinção de raça ou de cidadania, o que pode ser corroborado pela utilização da expressão “todos” ao referir-se a muitas das liberdades fundamentais[10].
Vislumbra-se do texto constitucional italiano a vontade do constituinte originário de tutelar não só a pessoa na sua dimensão individual, mas sobretudo na sua dimensão social. Neste prisma, no que tange à formação social, é reconhecido um rol essencial para o desenvolvimento do indivíduo, como por exemplo: a família, a escola, partido político, sindicatos, comunidade religiosa e toda estrutura de tipo associativo que abrangem a esfera social do indivíduo[11].
Consoante ensinamento do jurista brasileiro José Afonso da Silva, a Constituição italiana de 1948 foi a primeira a reconhecer a saúde como direito fundamental do indivíduo e de interesse da coletividade[12].
A normatização dos direitos sociais enquanto direitos fundamentais visam permitir que todas as pessoas possam alcançar um nível elevado de desenvolvimento humano num dado momento histórico.
Com efeito, os direitos fundamentais sociais constituem meios para que os membros da sociedade possam desenvolver a sua dignidade humana no sentido de exercício dos seus direitos de liberdade e da sua existência para livremente fazerem as suas escolhas de acordo com a sua concepção de vida.
Desta feita, os direitos sociais da mesma forma que os direitos de liberdade, pretendem permitir que, no âmbito da vida em sociedade, o particular possa livremente exercer as suas escolhas como protagonista da sua existência, o que muitas das vezes, tendo em vista uma sociedade marcada pela desigualdade social não seria possível sem que fosse dever do Estado planejar e executar as políticas sociais visando a efetividade do direito social[13].
Considerando a sua natureza de direito social, o direito à saúde possui duas dimensões: i) uma de natureza negativa, segundo a qual é exteriorizada no direito do particular de exigir dos poderes públicos que se abstenha de praticar qualquer ato que prejudique a sua saúde; ii) outra de natureza positiva consubstanciada no direito subjetivo público em algumas situações de exigir que os poderes públicos adote medidas e prestações visando salvaguardar o direito à saúde, no sentido de protegê-lo, bem como promovê-lo, conforme a hipótese, abarcando tanto a medicina preventiva (prevenção de doenças, como por exemplo a realização de campanha de vacinação), bem como a curativa (tratamento das enfermidades).
A problemática que se coloca é se todas as pessoas, sem qualquer distinção, fazem jus a essa prestação estatal visando proteger e promover o direito à saúde e quais seriam as prestações as quais estariam obrigados os poderes públicos: seria tão-somente para aqueles que não tivessem recursos financeiros para arcar com os custos de medicamentos e tratamentos médicos e haveria um valor pecuniário máximo para que os poderes públicos tivessem o dever de custear tais prestações ou seria somente a saúde básica ou também as que fossem de alto custo?
3- UNIVERSALIDADE DO DIREITO À SAÚDE
Não obstante ter desenvolvido a sua argumentação consagrando os direitos sociais como direitos fundamentais, o jurista espanhol Gregório Peces-Barba Martínez não lhes atribui o caráter de universalidade, asseverando que a proteção estatal deve ser conferida tão-somente àqueles que não podem por si só satisfazer as suas necessidades básicas com a finalidade de alcançar a igualdade material[14] .
Em outro sentido, o constitucionalista português Jorge Miranda, considerando que a Constituição da República Federativa Portuguesa dispõe que o acesso à justiça alude à insuficiência de meios econômicos, bem como declara o serviço nacional de saúde tendencialmente gratuito tendo em vista as condições socioeconômicas dos cidadãos, ao tratar do assunto entende que o Estado deve fornecer a todos os seus cidadãos gratuitamente, por meio da cobrança de impostos, as necessidades básicas e comuns, o que em se tratando de tutela de saúde significa dizer cuidados primários de saúde. Defende tal posição em virtude da essencialidade da prestação e da característica da universalidade.
No entanto, Jorge Miranda refuta a possibilidade de o Estado custear de forma total as demais prestações, não englobadas nas necessidades básicas e comuns.
Afirma que, pelo motivo das demais prestações não afetarem de forma congênere a todos os cidadãos, não tendo o mesmo sentido ou importância para todos e como são condicionadas a circunstâncias nem sempre passíveis de antevisão, fundamenta-se uma partilha dos custos da sua realização.
Conclui, pois, que o Estado deve pagar uma parte, os titulares do direito social, destinatários do serviço outra parte, até o limite que possam suportar, caracterizando uma repartição dos custos em face das condições socioeconômicas dos titulares dos direitos sociais. De outra sorte, tal premissa não se aplica na hipótese de o titular do direito social não possuir condições econômicas de custear o medicamento ou tratamento médico. Neste caso, se não pode pagar, não deve pagar.
Com a visão humanista que lhe é peculiar, arremata que a fronteira entre as necessidades básicas e as demais prestações não é fixa, nem tampouco imutável, sendo variável, também, em virtude do desenvolvimento econômico-social da sociedade na qual o demandante, titular do direito social, encontra-se inserido[15].
4-MÍNIMO EXISTENCIAL. MÍNIMO SOCIAL. SAÚDE BÁSICA VS. INTEGRALIDADE DAS PRESTAÇÕES
A questão que se coloca é se o direito à saúde deve ser universal no sentido de ser para todos, independentemente das condições financeiras, ou somente para aqueles que comprovarem insuficiência de recursos e quais as prestações estariam abarcadas pelo direito fundamental social à saúde.
O mínimo existencial é entendido como a prestação mínima imprescindível para que o particular tenha garantida a sua sobrevivência a nível fisiológico e psicológico, motivo pelo qual recebe a denominação de existencial ou vital, no sentido de garantir uma proteção contra possíveis situações que lhe venham obstaculizar a garantia de uma sobrevivência condigna.
John Rawls desenvolveu na sua obra intitulada “Uma Teoria da Justiça” ideias que possuem relação com a teoria do mínimo existencial, já que o autor desenvolve a justiça como equidade e, para tanto, vale-se do mínimo existencial como embasamento para cumprir tal desiderato. Rawls para atingir a justiça como equidade adota o mínimo existencial como garantia de que o particular terá uma prestação mínima para permitir o livre exercício e desenvolvimento da sua personalidade, bem como o exercício dos direitos de liberdade que a ordem jurídica lhe assegura[16].
A salvaguarda do mínimo existencial figura-se tão imprescindível que mesmo o doutrinador Ricardo Lobo Torres, o qual possui posicionamento minoritário no direito constitucional brasileiro ao adotar a tese de que os direitos sociais não são direitos fundamentais, entende que o mínimo existencial é um direito fundamental. Acrescenta que a jusfundamentalidade do mínimo existencial assegura a fruição efetiva dos direitos de liberdade. Assevera, ainda, que há um direito às condições mínimas de existência humana digna que para a sua implementação exige as prestações estatais positivas e que se encontram a salvo de qualquer interferência do Estado[17].
É curial destacar que parte da doutrina constitucionalista brasileira com arrimo na doutrina de Ana Paula de Barcellos[18], adotando o mínimo existencial como parâmetro para a implementação das prestações estatais positivas referentes à tutela de saúde, elaborou importante estudo, com o qual não concordamos, mas que tendo em vista a sua grande repercussão no meio acadêmico deve ser ressaltado.
Entende esta corrente doutrinária que o Poder Judiciário poderá determinar a execução das prestações do direito social à saúde que constituem o mínimo existencial, ou seja, aquelas relacionadas com a saúde básica[19], porém a interferência do órgão jurisdicional revelar-se-à ilegítima no que tange às demais que não estejam contempladas por esse mínimo existencial, exceto quando o Poder Legislativo já tenha editado lei no sentido de prever além desse mínimo. Nesta hipótese caberá ao Poder Judiciário tão-somente executar a lei editada a fim de implementar o direito à saúde previsto na lei infraconstitucional como opção política. Afirmam os adeptos dessa corrente de pensamento que a eficácia do mínimo existencial decorre da própria Constituição, dispensando a atividade legiferante para tal finalidade, o que determina ao Poder Judiciário a entrega da prestação jurisdicional consubstanciada na tutela de saúde com arrimo na força normativa da Constituição, ante a jusfundamentalidade do direito social à saúde.
Em sendo assim, há aqueles que entendem que o direito à saúde com recursos públicos deve abranger tão-somente a saúde básica, deixando de fora do Sistema Único de Saúde-SUS no Brasil e Sistema Nacional de Saúde na Itália os medicamentos de alto custo.
No entanto, existe entendimento doutrinário capitaneado pelo constitucionalista português Jorge Reis Novais[20] ampliando esse conceito e acrescentando às prestações relacionadas ao mínimo existencial ou vital, quais sejam, alimentação, vestuário, cuidados com a saúde e moradia condigna (abrigo ou alojamento), a situação do particular num contexto sociocultural, o que abrangeria também as condições efetivas de uma existência digna levando em consideração esse contexto.
Aliado a esse contexto estariam as exigências de prestações materiais de acordo com as possibilidades do Estado, o qual encontra-se em constante dinamismo, para salvaguardar ao particular a possibilidade de desenvolver a sua personalidade, de ter chances reais de inserção na sociedade da qual faz parte.
Neste diapasão, verificamos que esse mínimo existencial sociocultural representa algo além da exigência de condições necessárias para uma sobrevivência condigna, possuindo como norte a efetivação do princípio constitucional da sociabilidade, o que abarcaria todas as prestações de saúde que fossem necessárias para a efetivação do direito à saúde, abrangendo inclusive os medicamentos de alto custo.
Chegaríamos a esse mínimo através da adoção do critério da satisfação das necessidades e interesses essenciais para a sobrevivência ou, alternativamente, mediante a observância das exigências axiológicas mínimas da dignidade da pessoa humana [21].
É curial destacar o entendimento sufragado por Peces-Barba Martinez, o qual não nega a jusfundamentalidade dos direitos sociais, no entanto, perfilha a concepção de reduzir os direitos sociais às necessidades básicas do particular, o que se traduz na sua limitação ao mínimo existencial.
Argumenta que a proteção generalizada aos direitos sociais tem desvirtuado a finalidade de tais direitos em Estado Social quando acolhe quem tem meios de satisfazer as suas necessidades.
Assim, o dever estatal de promoção, segundo ele, em se tratando de direitos sociais deve abarcar tão-somente aqueles que não podem satisfazer por si mesmos as suas necessidades básicas ou manter uma vida condigna.
Por fim, para embasar tal linha de pensamento aponta além das razões de cunho econômico, a própria concepção de Justiça[22].
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando a característica da universalidade do direito à saúde, deve-se prestigiar o entendimento[23] de que o direito igual à vida de todos os seres humanos corresponde que nos casos de doenças, cada um deve receber tratamento condigno como expressão do princípio da dignidade da pessoa humana, de acordo com o estado atual da ciência médica, independentemente de sua situação econômica, sob pena de não se atribuir efetividade ao direito fundamental social à saúde. Vale dizer, os indivíduos deverão ter acesso a todas as prestações necessárias e suficientes para preservar, manter ou restabelecer a sua saúde.
O mínimo social, também defendido por John Rawls, necessário para a realização dos direitos e liberdades fundamentais, ao invés do mínimo existencial, em se tratando da tutela do direito fundamental à saúde deve ser adotado como garantia do indivíduo, eis que a saúde não admite gradações, não havendo que se falar em nível mínimo da saúde que atenda tão-somente as necessidades básicas do particular e sim a prestação que seja necessária para o exercício e desenvolvimento da sua personalidade.
Ocorre que em certos casos ou se faz um determinado tratamento, é fornecida uma determinada medicação ou o indivíduo irá a óbito.
Isso porque quando o mínimo social é visto apenas como um mínimo existencial ou vital, o qual abrangeria tão-somente as condições necessárias para a sobrevivência, tais como alimentação mínima e alguns cuidados médicos, a dignidade da pessoa humana, princípio constitucional estruturante não seria respeitado, já que para uma vida condigna não basta apenas a sobrevivência e sim qualidade de vida para que o particular possa exercer a sua personalidade com autonomia.
Essa qualidade de vida necessária para assegurar o mínimo social abrange as prestações materiais, as quais justificam-se jusfundamentalmente, e além da sobrevida asseguram ao particular as condições psíquicas para o exercício e desenvolvimento da sua personalidade, significando garantir não apenas a sobrevivência física, mas implicando no desenvolvimento da personalidade como um todo. Viver não é apenas sobreviver, sendo imprescindível, pois, que todo o tratamento médico, incluindo medicamentos, insumos e procedimentos médicos necessários para salvaguardar de forma efetiva o direito fundamental social à saúde sejam fornecidos aos indivíduos numa perspectiva de escolha de prioridades em Estado Democrático de Direito.
Por fim, consoante o escólio do jurista Ives Gandra Martins “o ser humano é a única razão do Estado. O Estado está conformado para servi-lo, como instrumento por ele criado com tal finalidade. Nenhuma construção artificial, todavia, pode prevalecer sobre os seus inalienáveis direitos e liberdades, posto que o Estado é um meio de realização do ser humano e não um fim em si mesmo[24]”.
REFERÊNCIAS
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[1] Doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Mestra em Ciências Jurídico-Políticas, Perfil Direitos Fundamentais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Defensora Pública Federal no Rio de Janeiro. Membra do Grupo de Trabalho Garantia de Segurança Alimentar e Nutricional da Defensoria Pública da União. Autora do blog www.direitosfundamentaisemfoco.com.br. Artigo inédito, elaborado para o blog, cuja reprodução é permitida mediante a referência à fonte de informação.
[2] “Artigo 138. Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis respectivas:
- f) adotar medidas legislativas e administrativas tendentes a restringir a mortalidade e morbilidade infantis; e de higiene social, que impeçam a propagação das doenças transmissíveis;
- g) cuidar da higiene mental e incentivar a luta contra os venenos sociais;
[3] STURZA, Janaína Machado e CASSOL, Sabrina. Do direito à saúde no Brasil ao diritto alla salute na Itália: breves apontamentos sociojurídicos. In: GORCZEVSKI, Clovis e REIS, Jorge Renato (org). Direitos Fundamentais Sociais como paradigmas de uma sociedade fraterna. Santa Cruz do Sul: Editora IPR, 2008, pp. 360-364.
[4] PEZZINI, Barbara. Il diritto alla salute: profili costituzionali. Bologna: Il Mulino, 1983, p. 52. apud STURZA, Janaína Machado e CASSOL, Sabrina. Do direito à saúde no Brasil ao diritto alla salute na Itália: breves apontamentos sociojurídicos. In: GORCZEVSKI, Clovis e REIS, Jorge Renato (org). Direitos Fundamentais Sociais como paradigmas de uma sociedade fraterna. Santa Cruz do Sul: Editora IPR, 2008, p. 370.
[5] “Art. 32: A República tutela a saúde como direito fundamental do indivíduo e interesse da coletividade, e garante tratamento gratuito aos pobres. Ninguém pode ser obrigado a um determinado tratamento médico senão por disposição de lei. A lei não pode, em nenhum caso, violar os limites impostos ao respeito da pessoa humana.” Tradução livre.
[6] STURZA, Janaína Machado e CASSOL, Sabrina. Do direito à saúde no Brasil ao diritto alla salute na Itália: breves apontamentos sociojurídicos. In: GORCZEVSKI, Clovis e REIS, Jorge Renato (org). Direitos Fundamentais Sociais como paradigmas de uma sociedade fraterna. Santa Cruz do Sul: Editora IPR, 2008, pp. 373-374.
[7] BOMPIANI, Adriano. Considerazioni in merito alla politica di sicurezza sociale nel settore dell´ assistenza e della sanità.Rimini: Maggioli, 1996, p.04, apud STURZA, Janaína Machado e CASSOL, Sabrina. Do direito à saúde no Brasil ao diritto alla salute na Itália: breves apontamentos sociojurídicos. In: GORCZEVSKI, Clovis e REIS, Jorge Renato (org). Direitos Fundamentais Sociais como paradigmas de uma sociedade fraterna. Santa Cruz do Sul: Editora IPR, 2008, p.357.
[8] Art. 2. “La Repubblica riconosce e garantisce i diritti inviolabi dell´uomo, sia come singolo sia nelle formazioni sociali ove si svolge la sua personalità, e richiede l´adempimento dei doveri inderogabili di solidarietà politica, economica e sociale.”
[9] LA CONSTITUZIONE ESPLICATA. La Carta fondamentale della Repubblica spiegata Articolo per Articolo. III Edizione. Edizioni Giuridiche Simone, p. 07.
[10] LA CONSTITUZIONE ESPLICATA. La Carta fondamentale della Repubblica spiegata Articolo per Articolo. III Edizione. Edizioni Giuridiche Simone, p. 08.
[11] LA CONSTITUZIONE ESPLICATA. La Carta fondamentale della Repubblica spiegata Articolo per Articolo. III Edizione. Edizioni Giuridiche Simone, pp. 08 e 09.
[12] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 9ª edição revista e ampliada de acordo com a nova Constituição. 4ª tiragem. Malheiros Editores, 1994, p. 276.
[13] PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregorio. Derechos Sociales y Positivismo Juridico (Escritos de Filosofía Jurídica y Política). Instituto de Derechos Humanos Bartolomé de Las Casas. Universidad Carlos III de Madrid. Dykinson, 1999, pp. 61- 66.
[14] PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregorio. Derechos Sociales y Positivismo Juridico (Escritos de Filosofía Jurídica y Política). Instituto de Derechos Humanos Bartolomé de Las Casas. Universidad Carlos III de Madrid. Dykinson, 1999, pp. 61- 66.
[15] MIRANDA, Jorge. Regime Específico dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. In: GARCIA, Emerson. Discricionariedade Administrativa. Rio de Janeiro. Editora Lumen Juris, 2005, pp. 303-304.
[16] Para uma análise mais aprofundada do pensamento constante de tais assertivas, vale conferir RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. Tradução Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997
[17] TORRES, Ricardo Lobo. Os Direitos Humanos e a Tributação. Rio de Janeiro: Renovar, 1995, pp. 124, 128-129.
[18] Posição doutrinária capitaneada por BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp. 272- 289.
[19] A autora Ana Paula de Barcellos nos fornece como exemplos de saúde básica o tratamento para enfermidades como a hipertensão, diabetes, doença de Chagas, dengue, cólera, bem como atendimento cardiológico, oftalmológico, ou ginecológico preventivo, pré e pós-natal, abrangendo inclusive o parto. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais…, op. cit., pp. 275-276.
[20] Visando cumprir o desiderato de comparar o mínimo existencial ou vital com o mínimo social, bem como o estudo acerca das teorias do mínimo social, valemo-nos dos ensinamentos do NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Sociais. Teoria Jurídica dos Direitos Sociais enquanto Direitos Fundamentais. 1ª Edição. Coimbra Editora, Março, 2010. pp. 190- 209.
[21] NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Sociais..., op. cit., pp. 201 e 203.
[22] PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregorio. Derechos Sociales y Positivismo Juridico (Escritos de Filosofía Jurídica y Política)...op. cit..
[23] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 28ª Edição. Revista e Atualizada. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 307.
[24] MARTINS, Ives Gandra. Caderno de Direito Natural-Lei Positiva e Lei Natural, nº 1, 1ª edição, Centro de Estudos Jurídicos do Pará, 1985, p. 27