O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE COMO CRITÉRIO NORTEADOR DO PODER JUDICIÁRIO NA CONCRETIZAÇÃO DAS POLÍTICAS SOCIAIS: SANEAMENTO BÁSICO COMO DIREITO À SAÚDE
Alessandra Fonseca de Carvalho[1]
O princípio da proporcionalidade deve ser respeitado e utilizado como critério norteador do órgão jurisdicional no que concerne à concretização das políticas sociais, uma vez que em muitas situações temos conflitos de interesses com os órgãos, agentes e entes públicos e com os demais membros da sociedade na qual o titular do direito fundamental social está inserido.
Destarte, o princípio da proporcionalidade visa à proteção dos direitos fundamentais sociais do particular contra o arbítrio do exercício do poder dos agentes públicos, objetivando assegurar a moderação no exercício de tal poder estatal e, por via de consequência, sublinha o papel da jurisdição constitucional como garantidora da efetivação dos direitos fundamentais de segunda geração.
Não se deve olvidar que a aplicação do princípio da proporcionalidade pelo Poder Judiciário na entrega da prestação da jurisdicional acarreta controle das leis, dos atos administrativos e das políticas públicas, permitindo ao órgão jurisdicional em muitos casos a análise do mérito do ato administrativo.
No entanto, o manejo do princípio da proporcionalidade com parcimônia, responsabilidade, zelo, prudência e bom senso, que são características inerentes ao exercício da função jurisdicional, mostra-se como meio efetivo de tutela dos direitos fundamentais sociais visando à implementação das políticas sociais.
Impende salientar que o princípio da proporcionalidade possui assento na doutrina alemã que ao desenvolvê-lo, realizou tal mister tendo como base três subprincípios, a saber: i) adequação ou idoneidade; ii) necessidade ou exigibilidade; iii) e proporcionalidade em sentido estrito[2].
Em sendo assim, primeiramente, devemos analisar a adequação, ou seja, a medida administrativa ou legislativa oriunda do Poder Público deve ser apta a alcançar o fim que se almeja, devendo ser analisada a idoneidade do ato emanado do poder estatal para obtenção da sua finalidade. Verifica-se, pois, se há uma relação entre o meio utilizado pelo Poder Público e o fim pretendido. Para tal, o órgão jurisdicional irá averiguar quais os fins levados em consideração pelo Poder Legislativo ao editar determinada norma e, se a aludida norma possui o condão de pelo menos, em tese, atingir esses objetivos. Na hipótese de não restarem atingidos tais critérios, a norma será inconstitucional e deverá ser invalidada pelo Poder Judiciário.
Em segundo lugar, cabe ao Poder Judiciário analisar a necessidade, isto é, considerando todas as medidas existentes para alcançar o fim que se almeja, deve o Poder Público escolher aquela que seja menos gravosa para o titular do direito fundamental social, motivo pelo qual o legislador ou o administrador no exercício do seu munus público deve optar pela medida que afete da menor forma possível os direitos fundamentais sociais do particular ou da coletividade.
Em terceiro lugar a proporcionalidade em sentido estrito, segundo a qual entende-se que a importância do fim pretendido com a restrição e o meio escolhido para alcançar aquele fim devem estar “numa relação razoável, proporcional, adequada à medida e importância dos efeitos danosos produzidos na esfera do titular do direito”[3], o que resultará na ponderação de interesses entre os valores em jogo. Destarte, é imperioso que o órgão jurisdicional analise se o ônus imposto pela norma ou ato administrativo é inferior ao benefício que terá o condão de trazer ao titular do direito fundamental social. Assim, para se desincumbir de tal tarefa, o membro do Poder Judiciário irá realizar uma autêntica ponderação de interesses, devendo de um lado analisar os interesses protegidos com a medida (norma ou ato administrativo) e no outro lado deverá verificar os bens jurídicos tutelados pelo ordenamento jurídico que serão restringidos ou sacrificados com ela. Desta feita, na ponderação, a restrição realizada a cada interesse em jogo, numa hipótese de conflito entre princípios constitucionais, só se justifica quando for apta a garantir a manutenção do interesse contraposto; quando não existir solução que imponha menos sacrifício e o benefício alcançado com a restrição a um interesse compensar o sacrifício imposto ao outro interesse contraposto [4]..
Vislumbra-se importantes questões relacionadas com a ponderação de interesses realizada pelo Poder Judiciário em duas situações: a primeira quando estivermos diante da ausência de disposição legislativa que solucione a colisão entre princípios constitucionais no caso concreto e a segunda ocorre quando tivermos a constitucionalidade da disposição legislativa questionada em controle difuso ou abstrato.
Na primeira hipótese, considerando o dever estatal de prestar a jurisdição, deverá valer-se da técnica da ponderação de valores para solucionar o conflito de interesses.
A segunda hipótese, traz uma questão que é objeto de inúmeras discussões acadêmicas e jurisprudenciais, qual seja, se o Poder Judiciário ao realizar uma ponderação de interesses ao aplicar as normas constitucionais estaria invadido a discricionariedade legislativa.
Há corrente de pensamento que argumenta que devemos levar em consideração que o juiz não é eleito, motivo pelo qual ao utilizar-se da técnica da ponderação de interesses acabaria por fazer valer no caso em concreto as suas opções políticas, sociais, ideológicas, partidárias, em desapreço as que foram, efetivamente, objeto de escolha pelo povo, através da eleição dos seus representantes. Assim, entende-se que caberia ao Poder Judiciário invalidar as normas infraconstitucionais tão-somente quando falecessem de razoabilidade ou quando contrárias à Carta Magna.
Visando aplicar o Princípio da Proporcionalidade a um caso em concreto, passa-se a analisar a seguinte decisão judicial, como estudo de caso, senão vejamos.
Decisão judicial concretizando política social de saneamento básico como direito à saúde à luz do princípio da proporcionalidade[5]
O Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública, ACP 2006.71.00363486, em face da União Federal, Fundação Nacional de Saúde-FUNASA e município de Torres objetivando que os réus implementassem as medidas cabíveis no sentido de incluir os municípios gaúchos de Torres, Capão da Canoa e Imbé, em programas de saneamento básico e ambiental das suas praias sob o argumento de que a omissão e/ou adoção de medidas insuficientes por parte do Poder Público implica danos ao meio ambiente, em face da poluição marítima, e à saúde da população[6], tendo sido o pedido julgado procedente pelo juízo monocrático.
Irresignadas, a União Federal e a Fundação Nacional de Saúde interpuseram Apelação em Remessa Necessária que foi autuada sob o nº 2006.71.00363486. A primeira apelante sustentou “a existência de critérios de distribuição de recursos por regiões, natureza política da distribuição das verbas federais para ações em saneamento; limitação de recursos (reserva do possível).” A segunda apelante, por sua vez, alegou que “não haveria comprovação nos autos de que o estado da qualidade da água das praias de Torres, Capão da Canoa e Imbé, apesar da precariedade do sistema de esgotamento sanitário, já reconhecido nas sentenças proferidas nas ações civis públicas, estivesse comprometendo a balneabilidade das águas desses municípios de forma a afetar a saúde dos cidadãos que as utilizam.”
A 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região negou, por unanimidade, provimento às apelações interpostas, bem como à remessa extraordinária utilizando nas suas razões de decidir o escólio do constitucionalista português José Joaquim Gomes Canotilho acerca do controle das políticas públicas no sentido de que:
“não há dúvida que a consagração concreta de políticas implica um mandato constitucional de optimização dos direitos através de uma política predeterminada com a consequente restrição da liberdade conformadora do legislador e entrada do controlo das políticas no circuito da constitucionalidade (ou inconstitucionalidade)[7]”.
Além de tais argumentos, o acórdão não se furtou de considerar o estabelecimento de critérios de prioridades pelo poder público, em razão da reserva do possível, mas ressaltou que tais critérios para concretização das políticas públicas sociais devem observar o princípio da proporcionalidade.
Em sendo assim, aplicando-se o princípio da proporcionalidade à presente controvérsia como diretriz da solução do caso em concreto, ou seja, se os réus devem ou não ser condenados à implementação e execução da política social de saneamento básico devemos analisar os três subprincípios: i) a adequação; ii) a necessidade ou exigibilidade e a proporcionalidade strictu sensu.
Tratando-se o saneamento básico questão de saúde pública e imprescindível para que os cidadãos tenham condições mínimas de vida digna, a adoção de medidas concretas para a sua implementação se revela como adequada (apta a atingir os fins pretendidos, que, no caso, são, em última análise, o bem-estar da população), necessária (não há outro meio para a implementação do saneamento, senão através da disponibilização de recursos financeiros, técnicos e operacionais por parte da União e da FUNASA, eis que a implementação dessa política pública requer um aporte maior de recursos financeiros e de um conhecimento técnico mais aprofundado, os quais não se encontram abarcados no âmbito do orçamento fiscal do município de Torres ) e proporcional (o ônus imposto ao Poder Público é irrelevante em relação aos inúmeros benefícios trazidos à vida da população dos Municípios, em termos de saúde preventiva, meio-ambiente ecologicamente adequado e benefícios econômicos) quando confrontada com o interesse fiscal do Estado.
REFERÊNCIAS
-ANDRADE, José Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 4ª edição. Coimbra: Almedina, 2010.
– CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O tom e o dom na teoria jurídico-constitucional dos direitos fundamentais. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre Direitos Fundamentais. 1ª edição brasileira, 2ª edição portuguesa. Coimbra: Coimbra Editora, 2008.
– GOUVEIA, Jorge Bacelar. Novos Estudos de Direito Público. 1ª Edição: Dezembro de 2002. Âncora Editora.
– NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra Editora, 2006.
– SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. 1ª edição, 2ª tiragem. Lumen Juris, 2002.
[1] Defensora Pública Federal no Rio de Janeiro. Doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Mestra em Ciências Jurídico-Políticas, Perfil Direitos Fundamentais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Ex-membra do Grupo de Trabalho Garantia de Segurança Alimentar e Nutricional da Defensoria Pública da União. Autora do blog www.direitosfundamentaisemfoco.com.br. Artigo inédito, elaborado para o blog, cuja reprodução é permitida mediante a referência à fonte de informação.
[2] SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. 1ª edição, 2ª tiragem. Lumen Juris, 2002, pp. 87- 96.
[3] NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra Editora, 2006, p. 279.
[4] ANDRADE, José Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 4ª edição. Coimbra: Almedina, 2010, pp. 300-308. Tecendo considerações acerca do princípio da proporcionalidade como parâmetro de orientação da atividade legislativa ao restringir os direitos fundamentais vale conferir os ensinamentos de GOUVEIA, Jorge Bacelar. Novos Estudos de Direito Público. 1ª Edição: Dezembro de 2002. Âncora Editora, pp. 91-110. O aludido autor sustenta que o Poder Legislativo no exercício da sua atividade legiferante deve ter como contenção o princípio da proporcionalidade levando em consideração a adequação da restrição ao fim que se almeja; a restrição ao direito fundamental deve ser imprescindível num juízo de comparação com os outros instrumentos possíveis de atuação legislativa, com um viés menos agressivo e a racionalidade de tal restrição quanto da ponderação entre as vantagens e os custos que decorrem da restrição.
[5] Disponível em https://www.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=noticia_visualizar&id_noticia=21135. Acesso em 25 de abril de 2024.
[6] Esse dever decorre de imposição constitucional, através do artigo 225 da Constituição da República Federativa do Brasil, segundo a qual “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”, com consequentes sanções previstas no § 3° do referido dispositivo constitucional, e do artigo 196 da Constituição da República Federativa do Brasil que dispõe que “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
[7]CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O tom e o dom na teoria jurídico-constitucional dos direitos fundamentais. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre Direitos Fundamentais. 1ª edição brasileira, 2ª edição portuguesa. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 130.